Sobre Charles Wesley

Introdução

Mil línguas eu quisera ter,
mil vozes pra louvar,
as glórias do meu Deus, meu Rei
triunfos do seu dom.

Gracioso Mestre, meu Senhor,
ajuda-me a pregar
por toda a terra, céu e mar
as honras do teu ser. i

Charles Wesley não recebeu a atenção que merece por parte dos metodistas. Peça-se a qualquer grupo de cristãos (na Grã-Bretanha) para que cite três famosos compositores de hinos e as chances serão poucas de que, entre nomes como Isaac Watts, Graham Kendrick e Fred Pratt Green, a pequena lista inclua o nome de Charles Wesley. Pergunte-se o nome de três ou quatro de seus hinos, e provavelmente irão fazê-lo com bastante facilidade. No entanto, se pedirmos para que contem algo sobre o caráter ou a vida de Charles Wesley, então provavelmente receberemos uma resposta bem diferente. Charles Wesley não é muito conhecido e suas biografias são poucas e esparsas. Há inúmeros estudos de seus hinos, mas, além da pequena introdução de John Vickers ii e dos trabalhos recentes de Arnold Dallimore, iii pouco material tem surgido para o leitor que deseja saber mais sobre a pessoa de Charles Wesley.
Há uma série de razões para isso.
Primeiro, a imagem grandiosa de John Wesley levou os historiadores a, inevitavelmente, concentrar-se nele e a negligenciar Charles. Aos olhos do público em geral, John tem sido visto como o fundador e a força motriz do Metodismo, e Charles simplesmente como seu “assistente”, conquanto um compositor de hinos por excelência. Além disso, porque as suas carreiras, no início e na maior parte do tempo, seguiram um curso paralelo, Charles tendia a ser ofuscado por John, seu irmão mais velho. Ambos foram à Universidade de Oxford, ambos estavam envolvidos no grupo de estudantes universitários que constituíram o “Clube Santo” e, em 1735, Charles acompanhou John à Geórgia – embora tenha retornado à Inglaterra mais cedo. Suas experiências de “conversão”, em maio de 1738, também têm semelhanças superficiais e, nos anos seguintes à 1738, Charles seguiu os passos de seu irmão viajando pelo país e, muitas vezes, pregando ao ar livre. Mesmo que Charles levasse uma vida mais estável em Bristol e em Londres, a partir de 1756 e durante toda a vida os dois irmãos Wesley desfrutaram de uma parceria natural com base na afeição mútua e na lealdade e, na maioria das vezes, também compartilharam de um objectivo comum.

Em segundo lugar, porque John se destaca como figura-chave, seu irmão mais novo (muitas vezes referido entre parênteses) foi, de certa maneira, negligenciado. É uma pena e uma grande injustiça para com Charles, uma vez que sua história é, em si mesma, importante e assunto de estudo fascinante.
A discrepância entre o que foi escrito sobre John e Charles vai se refletir na maior ou menor quantidade de material, produzido por cada um deles, já publicado e disponível. Os escritos de John estão por aí em milhões de mensagens e suas cartas, sermões, estudos e diários fornecem um vasto conteúdo, tanto para o estudioso profundo quanto para o leitor comum. Edições compactas de seu diário, sermões e comentários sobre o Novo Testamento são facilmente acessíveis em brochura e em edições populares. Charles, pelo contrário, deixou-nos pouco. Além do imenso número de seus hinos, é claro, temos uma quantidade limitada de cartas e apenas parte de um diário que cobre o período entre 1736 e 1756. Mesmo assim é um registro incompleto. iv Além disso, só recentemente é que os sermões de Charles foram publicados numa coletânea.v Não é de surpreender, portanto, que Charles tenha recebido relativamente pouca atenção em comparação com John.
Por que temos tão pouco dos escritos do próprio Charles?
Uma das razões tem a ver com o lugar secundário que lhe foi atribuído por seus contemporâneos e imediatos sucessores, que parecem não ter pensado que seus escritos tinham suficiente importância ou interesse para serem preservados, e menos ainda para serem publicados em qualquer quantidade. Um de seus primeiros biógrafos sugeriu que os escritos famíliares fossem mantidos longe da vista do público, porque, em vista da sabida oposição de Charles a qualquer iniciativa no sentido de separação da Igreja da Inglaterra, “muitos dos metodistas tinham para com ele um sentimento hostil”. vi Assim, por exemplo, o público teve que esperar até 1849 para ler a edição de Thomas Jackson, de seu diário, que incluía 106 de suas cartas, e até 1948 para que o livro de Frank Baker: Charles Wesley as Revealed by His Letters (Charles Wesley Revelado Por Suas Carta) aparecesse na mídia impressa, com mais de duas centenas de extratos da correspondência de Charles.
O diário, que inicialmente Charles escreveu em folhas soltas de papel, realmente esteve perdido por um tempo e só foi descoberto por acaso, quando foi encontrado entre outras coisas no chão de um armazém onde seu filho tinha guardado alguns instrumentos musicais!

A outra razão para essa situação encontra-se no próprio Charles. Sua inclinação para a auto-anulação significou que, da mesma forma que ele permitiu que John ocupasse o centro das atenções, ele também não achou que valesse a pena publicar seus próprios escritos. Logo após a morte de Charles, em 1788, John escreveu uma carta para sua sobrinha, Sally Wesley, onde ele lamenta que seu irmão tivesse parado de escrever em seu diário tantos anos antes. Ele atribui isso a uma “falsa humildade”. vii Charles tinha bem pouca noção de que as gerações futuras pudessem se interessar por ele!

Charles também foi muito menos meticuloso que seu irmão. Muitas vezes sua correspondência não tinha qualquer data ou assinatura. Às vezes, ao escrever para a família ou amigos íntimos, suas cartas omitiam esses detalhes. Além disso, sua caligrafia, tanto no diário quanto nas cartas, não é muito fácil de ler e as cartas, que muitas vezes contêm abreviações, são intercaladas com frases em latim e em grego. viii Esses fatores tendem a dissuadir o leitor casual e são motivo de frustração mesmo para aqueles que desejam estudar a sua vida em profundidade.

Charles merece ser mais conhecido, e não apenas por seus colegas metodistas.

É verdade que ele foi ofuscado por seu irmão mais velho e “durante toda sua vida manteve o costume de dar lugar a John”. ix No entanto, Charles era bem capaz de pensar e agir independentemente. Foi ele, e não John, quem primeiro foi apelidado de “metodista” e sua própria busca pela paz de espírito tomou um caminho diverso entre 1736 e 1738. Além disso, os irmãos nem sempre concordavam em tudo. Eles discordavam ˗às vezes completamente˗ sobre as relações familiares ˗e, talvez o exemplo mais gritante, tenha sido justamente a diferença na maneira de tratar sua irmã, Hetty. Nos anos seguintes a 1756, Charles travou uma batalha perdida com John sobre a questão da separação da Igreja da Inglaterra. Diz-se que comentou em uma ocasião:

toda a diferença entre meu irmão e eu era que a prioridade do meu irmão eram os metodistas e depois a Igreja: e a minha era primeiro a Igreja e, em seguida, os metodistas. Nossas diferenças no julgamento das pessoas era porque nossos temperamentos eram também diferentes, ele era todo esperanças e eu era todo temores. x

Apesar de ter um quadro geral cronológico, o livro Irmão Charles segue uma abordagem mais temática e seu objetivo não é o de ser uma biografia completa. Pelo contrário, destina-se a pintar um breve retrato de Charles como pessoa, pois ele era um homem de grande profundidade e humanidade. Como veremos, Charles tinha, de certa forma, uma personalidade mais atraente do que a de John. John – uma personalidade forte, dinâmica, que às vezes podia exibir uma rispidez e uma severidade que intimidava seus colegas – tinha o dons naturais de um líder pelos quais os metodistas sempre serão gratos. Charles, pelo contrário, era agradável, sociável e possuía ao todo um caráter bem mais gentil. Pode-se dizer que, de certo modo, ele foi para o John, o que “Barnabé” foi para “Paulo”. xi

É principalmente como o “doce cantor” do Metodismo que Charles é lembrado e em um capítulo mais adiante se analisa sua contribuição única para a Igreja universal a este respeito. É interessante notar, no entanto, que quando John fez uma pequena homenagem na Conferência de 1788 pela recente partida de Charles, comentou que “por último, e não sem menor valor, ele iria elogiar o talento de Charles para a poesia”. Esta foi uma homenagem genuína, nascida de uma percepção aguçada das qualidades inerentes a Charles e da compreensão do caráter de seu irmão ao longo da vida. É importante, portanto, que, embora dando o devido peso ao talento de Charles como compositor de hinos, tentemos identificar as características pelas quais ele mereceu elogios de John. Essa é a principal intenção deste livro.

i • Todos os versos no início dos capítulos, capítulos e seções foram retirados dos hinos de Charles Wesley, alguns dos quais estão em Hymns and Psalms (Hinos e Salmos, que apareceu em 1983, embora todos eles possam ser encontrados no The Methodist Hymnbook (O Hinário Metodista) compilado cinqüenta anos antes. Estas duas edições em inglês foram publicadas pela The Methodist Publishing House (Casa Editora Metodista). As palavras foram retiradas da versão mais antiga dos hinos.

N.Tr. As traduções ao português foram coletadas de diversas fontes. Este verso foi traduzido por Jaci Maraschin, 2007. O hino completo deverá estar publicado em breve no Hinário Wesleyano.

ii • John Vickers, Charles Wesley, The Foundery Press 1990.

iii • A. Dallimore, A Heart Set Free: a vida de Charles Wesley, Evangelical Press 1988. O fato que a biografia “padrão” existente anteriormente seja a de Frederick Gill: Charles Wesley, O Primeiro Metodista, publicada pela Lutterworth em 1964 demonstra a escassez de material mais recente para o leitor em geral.

iv • Tem início em 9 de março de 1736, na chegada de Charles à Geórgia. Há lacunas significativas em 1740 e 1741, não há nada entre setembro de 1741 e janeiro de 1743, e constam apenas fragmentos dos últimos dois anos. Seu diário termina abruptamente em 5 de novembro de 1756.

v • Este é o livro de Kenneth Newport, The Sermons of Charles Wesley: A Critical Edition with Introduction and Notes (Os Sermões de Charles Wesley: Uma Edição Crítica com Introdução e Notas), publicado em Setembro de 2001 pela Oxford University Press.

vi • Este ponto de vista foi sugerido por Thomas Jackson em The Life of the Rev. Charles Wesley, MA (A Vida do Rev. Charles Wesley, MA, Londres 1841, p. iii. Na realidade, na opinião deste autor, esse não foi o motivo mais provável.

vii • John Wesley, Letters (Cartas), vol. VIII, p. 93. Este, e todos os extratos subseqüentes das cartas de John Wesley são retirados da edição standard das cartas: The Letters of the Rev. John Wesley editada por John Telford (8 vols), Epworth Press 1931.

viii • Charles foi convencido por John a utilizar o Universal English Shorthand (Taquigrafia Universal Inglesa) de John Byrom, que não é nada fácil de decifrar.

ix • Dr Maldwyn Edwards, Sons to Samuel (Filhos de Samuel), Epworth Press, 1961, p. 53.

x • Citado por John Telford (ed.), The Letters of the Rev. John Wesley (As Cartas do Rev. John Wesley), Epworth Press 1931, vol. VIII, p. 267.

xi • Esta comparação foi feita em The Making of Methodism (A Feitura do Metodismo), (p.11) e é a avaliação do próprio autor. Certamente está aberta ao desafio!