Quinta-feira, 25 de março (de 1736)
As cinco, ouvi o segundo rufar do tambor chamando para as orações, que eu gostaria fossem dirigidas pelo Sr Ingham, já que eu estava debilitado pelas febre. Entretanto, considerando que deveria aparecer, especialmente desta vez, levantei-me e ouvi estas palavras animadoras: “Se alguém me serve, precisa seguir-me; e onde estou, o meu servo também estará. Aquele que me serve será honrado por meu Pai. Agora minha alma está perturbada, e o que direi? Pai, salva-me desta hora? Não! Eu vim precisamente com esse propósito e para esta hora. Pai, glorifica o teu Nome!” (João 12: 26-28)
Às sete e meia, o Sr Oglethorpe me chamou para fora de minha tenda. Eu me pus diante de Deus e fui até ele. Ele me acusou de motim e sedição; de incitar o povo a abandonar a colônia. De modo similar disse que as pessoas tinham se reunido na noite anterior e, esta manhã, enviado uma mensagem para ele dizendo que desejavam ir embora; que o porta-voz deles o havia informado, em contra deles, que eu era o iniciador de tudo; que os homens eram assíduos frequentadores das orações e por isso eu os devia ter instigado; que ele não teria nenhum escrúpulo em atirar contra meia dúzia deles, de uma só vez, mas que, em um gesto de bondade, primeiramente viera falar comigo.
Minha resposta foi: “Eu desejo, Sr, que não leve em consideração esses meus irmãos, meus amigos ou o amor que o Sr tem por mim, se tudo isso vem contra mim. Eu não sei de nada sobre essa reunião ou os planos deles. Sobre essas pessoas que mencionou, nenhuma delas comparece, com frequência, às orações ou sacramentos. Eu jamais incitei alguém a deixar a colônia. Desejo responder a meu acusador face a face.”
Ele me disse que meu acusador foi o Sr Lawley e que o traria à minha presença se eu aguardasse ali. Acrescentei: “O Sr Lawley é um homem que já declarou não ver nenhuma razão para ficar de bem com ninguém mas sim de conseguir tudo por si mesmo; e que não havia nada a ser obtido pelos pobres clérigos”. 1
Perguntei-lhe se ele mesmo não estava certo de que havia homens suficientes em Frederica capazes de dizer ou jurar qualquer coisa contra qualquer pessoa que estivesse em desgraça: se, caso ele mesmo fosse removido ou estivesse doente, uma enxurrada de pessoas não se voltaria contra ele até mesmo esse tal de Lawley, que era, dentre todos, o mais violento em condenar os prisioneiros e justificar os oficiais. Observei que isso soava como o antigo grito: “Fora com os cristãos para os leões!”; 2 mencionei o quanto Hawkins e sua esposa estavam escandalizando meu irmão e eu e jurando vingança contra nós dois, ameaçando-me, ontem mesmo, e em sua presença. Perguntei se não havia alguma reparação ou satisfação a ser dada pelo meu caráter; qual o bem eu poderia fazer em minha paróquia alí, se fosse banido pelas calunias sem nunca ter visto a metade delas.
Terminei assegurando-lhe que tinha o propósito, e ainda faria disso minha missão, de promover a paz entre todos. Não me senti nem um pouco perturbado, enquanto falava, mas elevei meus pensamentos a Deus e senti sua presença comigo.
Enquanto o Sr. Oglethorpe estava indo buscar Lawley eu pensei nas palavras de Nosso Senhor: “Sereis levados à presença de governadores e reis por minha causa, para testemunhardes a eles e aos gentios. Todavia, quando vos prenderem, não vos preocupeis em como, ou o que deveis falar, pois que, naquela hora, vos será ministrado o que haveis de dizer” (Mateus 10:18,19). Supliquei a ajuda de Deus e palavras sábias para fazer minha defesa.
Antes do Sr Oglethorpe retornar chamei o Sr Ingham para que orasse por mim; então caminhei e, refletindo sobre o acontecido, abri as Escrituras em Atos 15: 31-33: “Os irmãos a leram e muito se alegraram com sua encorajadora mensagem… exortaram e fortaleceram os irmãos com muitos ensinamentos. Havendo, porém, dedicado algum tempo ali, foram despedidos pelos irmãos com a bênção da paz”.
Ao chegar o Sr Ingham, relatei tudo o que se havia passado. Ao ver que o Sr Oglethorpe e Lawley se aproximavam, ele se afastou.
O Sr Oglethorpe observou que o lugar onde estávamos era demasiadamente público. Eu me ofereci para leva-lo em passeio pelo meu usual caminho na floresta. Em meio a nossa caminhada, Deus colocou em meu coração dizer: “Mostre apenas a mínima intenção de não me considerar culpado e vai ver que reviravolta isso dará à acusação”. Ele pegou a dica, porém, em lugar de chamar o Lawley para assumir sua responsabilidade, começou a discutir a briga em geral. Entretanto, não demonstrou que estava aborrecido comigo ou desejoso de me considerar culpado. Lawley, que parecia cheio de culpa e medo, diante disso, retirou sua acusação e se limitou a comentar o meu “forçar o povo às orações”. Eu repliquei que o povo mesmo estava de acordo com isso e, sobre a briga dos oficiais eu havia feito apelo a eles pela veracidade de minha afirmação de que eu não tinha nada a ver com aquilo; que reafirmava meu desejo e resolução em promover a paz e a obediência: o mesmo sendo aplicável a todo o povo. Eu estava persuadido que o desejo deles em deixar a colônia surgiu por equívoco e não por malícia. Nesse ponto, o Sr Oglethorpe falou sobre a questão da reconciliação; deu a Lawley a oportunidade de dizer aos peticionários que ele (Lawley) não iria mais perguntar quem eram e o que pretendiam se eles se aquietassem de agora em diante. “Eu espero”, acrescentou, “que assim será; e o Sr. Wesley aqui, também assim o espera”. “Sim, Senhor”, disse Lawley, “Eu realmente creio no Sr Wesley, pois sempre tive um grande respeito por ele”. Eu me voltei e disse ao Sr Oglethorpe: “Eu não lhe disse que seria assim?” Ele respondeu a Lawley, “Sim, você sempre teve um grande respeito pelo Sr Wesley. Você me disse que ele era um instigador da sedição e que estava na base de todos esses distúrbios”. Com essa gentil reprovação, o despediu; e eu lhe agradeci por haver primeiramente falado comigo sobre aquilo de que me acusavam, suplicando-lhe que fosse sempre assim. Ele assim o prometeu e juntos caminhamos em direção à porta da Sra Hawkins. Ela saiu e ficou irritada por me ver com ele. Ali ele me deixou “e eu fui libertado da boca do leão”. 3
Fui para minha cabana onde encontrei o Sr Ingham. Ele me disse que isso não era senão o princípio das dores, “Não como eu quero mas como Tu queres”. 4 Cerca do meio-dia, em meio a uma violenta tempestade com raios e trovões, eu li o salmo dezoito e achei que se aplicava de forma maravilhosa a esse meu momento. Eu nunca havia sentido as Escrituras como as senti agora. Agora eu as necessito, eu as acho como se escritas inteiramente para minha instrução e conforto. Ao mesmo tempo eu sinto grande alegria na expectativa da vinda de nosso Salvador na perspectiva do julgamento, quando os segredos de todos os corações serão revelados, e Deus fará que minha inocência apareça tão clara como a luz e minha justa causa como o meio-dia.
As três eu caminhei com o Sr Ingham e lhe reportei a história desse incrível dia. Ele se alegrou comigo pela proteção de Deus e pelo conforto das Escrituras.
A leitura bíblica da noite foi cheia de encorajamento: “Sabe, entretanto, disto: nos últimos dias sobrevirão tempos terríveis. Os homens serão… caluniadores, sem domínio próprio, cruéis, inimigos do bem, Todavia, os perversos e impostores andarão de mal a pior, enganando e sendo enganados, traidores, inconsequentes, orgulhosos, …Contudo, não irão longe; pois …a insensatez que lhes é própria se manifestará claramente a todos. Tu, porém, tens seguido atentamente minha teologia, procedimento, propósitos, fé, paciência, amor, perseverança; observado minhas perseguições e aflições,… Quantas perseguições suportei! Contudo, de todas o Senhor me livrou! De fato, todas as pessoas que almejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidas. Todavia, os perversos e impostores andarão de mal a pior, enganando e sendo enganados…Toda a Escritura é inspirada por Deus e proveitosa para ministrar a verdade, para repreender o mal, para corrigir os erros e para ensinar a maneira certa de viver; (2 Tm 3: 1-4; 9-13; 16). Bendito seja Deus, comecei a achar isso também!
Encontrando-me com o Sr Hird eu o persuadi a usar de todo o empenho, diante do povo, para que deixassem de lado todo e qualquer pensamento de abandonar a colônia. Ele me disse que garantiu ao Sr Oglethorpe de que essa tinha sido sempre minha atitude e meu modo de me dirigir a ele e aos demais; mas cortou a conversa dizendo: “Você não precisa me dizer isso pois sei muito bem do que se trata”.
Depois de gastar uma hora, no acampamento, cantando os salmos indicados (no Lecionário) e apropriados para a ocasião, recolhi-me e fui para a minha cama na cabana; a cama estava totalmente molhada pela chuva do dia.
1 No original : « the poor parsons »
2 (N. do T.) No final do segundo século, o apologista cristão Tertuliano posicionou-se contra a percepção difundida de que os cristãos eram a fonte de todos os desastres trazidos contra a raça humana pelos deuses. Ele diz: “Eles acham que os cristãos são a causa de todo desastre público, de toda aflição que as pessoas sofrem. Se o Tiber subir tão alto quanto as muralhas da cidade, se o Nilo não enviar suas águas sobre os campos, se os céus não derem chuva, se houver um terremoto, se houver fome ou pestilência, o clamor é direto ‘Fora com os cristãos para os leões!’
3 Charles Wesley aqui faz referência ao texto de 2 Tm 4:17
4 Mt 24:8 e Mt 26:39
O diário do Rev. Charles Wesley Tradução de trechos do original por Simei Monteiro The Journal of the Rev. Charles Wesley: Some Time Student of Christ Church, Oxford, to which are Appended Selections from His Poetry with an Introduction and Occasional Notes Autor Thomas Jackson - Editora Baker, 1980 mais informações